Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre justiça ambiental nas favelas fluminenses.
Em dezembro de 2023, o técnico em mecânica, Sandro Luís Costa, morador do Parque Amorim, bairro da cidade de Belford Roxo, município da Baixada Fluminense, presenciou um dos temporais mais avassaladores da região. Habitando uma casa de dois andares, a inundação invadiu o quintal, deixando ele e a família ilhados por dias. Impossibilitado de se deslocar, Sandro perdeu mais de uma semana de serviço. Chovendo torrencialmente entre o Natal e o Ano Novo daquele ano, foi necessário mais de uma semana para que as águas secassem. Sua família não teve prejuízo material, mas a grande maioria de seus vizinhos, com habitações mais vulneráveis, perdeu móveis e eletrodomésticos.
“Teve vizinho meu que ficou com um metro e vinte centímetros de água dentro de casa. Eu medi.” — Sandro Luís Costa
Um caso semelhante aconteceu com Jupira Brasilino, presidente da Associação de Moradores de Jardim Nova Era, em Nova Iguaçu. Por causa das últimas enchentes, ocorridas em fevereiro de 2024, ela precisou se deslocar para o bairro vizinho, uma localidade conhecida como Marco Dois, em Jardim Alvorada. Ao acordar pela manhã, a água barrenta já estava cobrindo os tornozelos. Com os prejuízos, ela recorreu ao Saque Calamidade do FGTS, benefício que, entre seus usos, permite aos trabalhadores afetados por desastres naturais retirar uma parte do saldo do fundo para comprar móveis novos.
No entanto, longe de terem sido um “desastre natural”, as enchentes que atingiram a Baixada em fevereiro de 2024 resultaram, segundo moradores, da negligência do Estado, sobretudo, devido à falta de manutenção da infraestrutura anti-enchentes.
“Instalaram uma bomba perto do rio para tentar melhorar a situação nesses momentos de chuva, mas só funcionou durante uns seis meses. Quebrou e ninguém nunca mais consertou.” — Jupira Brasilino
No contexto atual, que consiste também do agravamento das mudanças climáticas, com impactos cada vez mais catastróficos nos territórios da Baixada, as situações vividas por Jupira e Sandro poderiam ter sido amenizadas se não fosse essa negligência. Os moradores insistem que os impactos das fortes chuvas poderiam ser mais brandos se os governos fizessem gestões urbanísticas e ambientais adequadas.
As Desventuras em Série do Projeto Iguaçu
Em 23 de fevereiro de 2024, após uma nova enchente que ocasionou o transbordamento do Rio Botas, O Globo afirmou que a Casa Civil do governo estadual apresentou à União um projeto para recuperar a Bacia do Rio Iguaçu-Botas e Sarapuí no valor de R$733 milhões, valores que, somados a tudo o que já foi gasto, ultrapassariam a marca de R$1 bilhão.
Negligência do Estado Reforça Danos ao Meio Ambiente com o Avanço das Milícias
Embora repleto de bons planos e com a intenção de tornar parte da Baixada Fluminense climaticamente resiliente, o Projeto Iguaçu se notabilizou por uma série de equívocos e constragimentos. O remanejamento de milhares de famílias para outras localidades fazia parte do projeto—que previa a construção de 3.000 moradias—mas faltou sensibilidade por parte das autoridades em como conduzir a implementação dessas políticas.É o que relata Marlúcia Santos de Sousa, historiadora especializada em políticas públicas e integrante da direção colegiada do Museu Vivo do São Bento, ecomuseu localizado em Duque de Caxias. Ela conta que a primeira etapa do Projeto Iguaçu, em 2007, começou com tensas reuniões com as comunidades ribeirinhas. Segundo a pesquisadora, o Estado deu uma série de informações desencontradas, o que provocou grande mal estar entre os moradores.
“Aqui em Duque de Caxias presenciamos a vinda de psicólogos para auxiliar no impacto emocional dos moradores, pois muitas famílias que viviam nas margens do Rio Sarapuí e Rio Iguaçu temiam ficar sem teto em função das obras, que removeriam as habitações que já existiam há anos nesses locais. Foi tudo muito confuso e desgastante.” — Marlúcia Santos de Sousa
A historiadora conta que houve informações desencontradas, inclusive, com relação a onde seriam construídas as novas edificações, que ficariam muito distantes das moradias de origem, às margens da Rodovia Rio-Petrópolis. Ao mesmo tempo em que houve remoções, com a falta de políticas habitacionais eficazes, a ocupação de áreas vulneráveis de manguezais e da Área de Proteção Ambiental (APA) do São Bento continuou a acontecer.
“Hoje, ainda existem onze ocupações, entre elas, a Vila Alzira, uma das comunidades que estão dentro da APA do São Bento e que, junto com a comunidade do Guedes, seria removida e seus moradores realocados para o condomínio Volterra, que faz parte do Minha Casa, Minha Vida e foi entregue no segundo governo da Presidenta Dilma Rousseff. Acontece que, tempos depois, a prefeitura de Duque de Caxias acabou entregando os apartamentos para os moradores da comunidade Teixeira Mendes, no Sarapuí, passando por cima do cadastro feito pelo INEA junto das comunidades do São Bento. Isso sem falar que muitas áreas residenciais recém-construídas estão sob o domínio de grupos criminosos.” — Marlúcia Santos de Sousa
Para piorar, desde 2019, há um esquema bem conhecido de grilagem de terra por milicianos no Guedes, comunidade também conhecida como Novo São Bento. Cercada pelos rios Iguaçu e Sarapuí, o Guedes parece estar brotando de um oásis verde, já que cresce em meio à área de manguezais e taboal, uma planta que cresce em regiões pantanosas. Sem direito à moradia, a negligência do Estado abre a possibilidade de mais um negócio lucrativo para as milícias, que degrada o meio ambiente e aprofunda a vulnerabilidade climática da região.
Pelas dimensões gigantescas do Projeto Iguaçu, uma das exigências contratuais era a criação de um mecanismo popular de monitoramento e fiscalização das obras. Eleições ocorreriam nos bairros das cidades afetadas pelo projeto com a formação de comitês locais. A ideia inicial era que os moradores levassem seus pontos de vista e vivências locais para a formação e execução do projeto, o que o tornaria representativo das demandas dos territórios.
Assim sendo, moradores interessados em participar do processo puderam se inscrever, votar e ser votados para a formação desses conselhos. A participação cidadã através do comitê teria um papel essencial no avanço das obras e na consolidação dos impactos do projeto. No entanto, ao contrário da ideia inicial, o escopo desta participação foi bastante limitado, tal como a atuação do comitê. É o que afirma Rogério Gomes, comunicador de Belford Roxo, que, em 2007, assumiu um assento na Comissão Executiva de Controle Social, Acompanhamento e Fiscalização do Projeto Iguaçu.
“Segundo informações do INEA, teriam sido eleitos cerca de 70 representantes nos sete municípios, todos com apresentação de ata e lista de presença das reuniões. Apesar da eleição, esse comitê nunca foi apresentado oficialmente ou recebeu algum tipo de identificação ou credencial, sendo tratado meio que extraoficialmente.” — Rogério Gomes
Rogério também afirma que o comitê provocou pouquíssimas interferências reais em relação à fiscalização das obras. No caso das irregularidades detectadas pelo grupo, o comunicador afirma existir um “abismo de narrativas” entre o que consta nos documentos oficiais e o que, de fato, foi testemunhado pelos membros do comitê.
“Teve de tudo um pouco: calçadas afundando, ciclovias desabando e quadras esportivas fora da medida. Paralisação de obras, como: a construção do Conjunto Habitacional Cobrex, em Nova Iguaçu, e do Barro Vermelho, em Belford Roxo, da Barragem do Sarapuí e das Estações de Bombas do Pilar e do São Bento, que não conseguimos avançar até hoje.” — Rogério Gomes
Esta reportagem entrou em contato com o INEA, para o qual foram enviadas perguntas que há anos seguem sem resposta, revoltam os moradores e contribuem com a ansiedade climática. No entanto, até a publicação desta reportagem, o órgão estadual ainda não havia respondido.
Atualmente, chega a proposta do Novo PAC que promete um investimento trilionário para transformar a infraestrutura do país: R$1,8 trilhão em investimentos previstos até meados de 2026. No entanto, sem planejamento, controle eficiente e genuína participação popular, a população da Baixada Fluminense teme continuar vulnerável a eventos climáticos extremos, cada vez mais recorrentes nas favelas e periferias do Brasil, à mercê de promessas não cumpridas.
Sobre o autor: Fabio Leon é jornalista, ativista dos direitos humanos e assessor de comunicação no Fórum Grita Baixada.