Estudos compilados pelo Climate Central mostram que as inundações vão se agravar em municípios da baixada nas próximas três décadas, ampliando a área atingida e afetando milhões de pessoas (veja o mapa abaixo).
Só nas bacias dos rios Sarapuí e Iguaçu, principais eixos drenantes da baixada, ao menos 2,2 milhões de pessoas vivem sob risco de inundações, segundo mostra o Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano Integrado da Região Metropolitana do Rio de Janeiro —projeto desenvolvido pelo governo do estado com financiamento do Banco Mundial.
A elevação do nível do mar tornará ainda mais problemático o escoamento das chuvas, enquanto os temporais ficarão cada vez mais frequentes, segundo mostra o Climate Central, organização que une cientistas e jornalistas para divulgar pesquisas sobre os impactos das mudanças climáticas.
Os efeitos disso já são percebidos por cientistas e moradores da região, conforme relatos colhidos pelo UOL. A reportagem percorreu, nos últimos cinco meses, os principais rios da baixada e várias comunidades localizadas às margens deles (veja o vídeo abaixo).
A conclusão é que as mudanças climáticas vão afetar ainda mais a população pobre e vulnerável da região, acentuando um ciclo de pobreza e exclusão na Baixada Fluminense.
"Não tem mais cama, não tem guarda-roupa. Não adianta a gente ir para a loja comprar porque no outro ano vai perder tudo. Não adianta comprar móvel caro e estragar. É jogar dinheiro no lixo", relata Maelson de Andrade, que mora às margens do rio Iguaçu, em Duque de Caxias.
A elevação do nível do mar e os efeitos na Baixada Fluminense
Como o próprio nome diz, a Baixada Fluminense está abaixo do nível do mar, o que por si só dificulta o escoamento das chuvas e propicia inundações.
A ocupação desenfreada das margens dos rios Iguaçu, Sarapuí, Botas e seus afluentes —seja por favelas ou cidade formal— e a poluição despejada nos cursos d'água aceleraram o assoreamento da foz da bacia hidrográfica que deságua na Baía de Guanabara.
O assoreamento existente hoje já forma uma espécie de barreira de lama e lixo, que prejudica o escoamento da água quando chove.
A progressiva elevação do nível do mar causada pelas mudanças climáticas deve agravar ainda mais esse quadro, explica o engenheiro Matheus Martins de Sousa, professor do Departamento de Recursos Hídricos e Meio Ambiente da Escola Politécnica da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
"Tanto o rio Iguaçu quanto o Sarapuí têm uma configuração muito propícia a inundações. Quando chove, o mar funciona como uma parede segurando o escoamento e impede que a cheia desça", ilustra.
Ele estima que, nos próximos anos, as mudanças climáticas aumentem em até 30% o volume das chuvas.
Chuvas que hoje não provocam inundações vão passar a provocar, porque o nível do mar formará uma barreira maior. E chuvas que já provocam inundações provocarão ainda piores."
Matheus Martins de Sousa, professor da UFRJ
O impacto da elevação do nível do mar pode ser medido por modelos matemáticos.
Segundo as pesquisas de Sousa, quanto maior a elevação do nível do mar mais tempo as inundações ao longo dos rios da baixada podem durar. Isso deve acontecer porque o maior volume da água do mar vai dificultar o escoamento desses rios para a Baía de Guanabara.
No caso do bairro São Bento —um dos pontos mais críticos para inundações em Duque de Caxias—, estima-se que a inundação dure, em média, mais de 1 hora e 30 minutos se o mar subir 20 cm.
Em cenário em que o nível do mar aumenta 40 cm, a área ficará 4 horas a mais debaixo d'água.
As projeções dependem da evolução do aquecimento global nos próximos anos.
Inundação a um raio de 500 m do rio
Nova Iguaçu registrou na última sexta-feira (1º) 222 mm de chuvas —175% do volume esperado para abril. Em Belford Roxo, o acumulado foi de 228 mm —185% do previsto para este mês.
Para José Paulo Azevedo, professor da área de recursos hídricos do programa de Engenharia Civil da Coppe/UFRJ, as inundações na baixada já sofrem influência das mudanças climáticas. Ele aponta uma combinação de chuvas mais intensas e elevação progressiva do mar —consequências das alterações no clima.
Às margens do rio Botas, o volume extremo de chuvas fez com que a água atingisse localidades que nunca tinham sido prejudicadas antes —mostrando na prática o que dizem os especialistas.
O UOL encontrou pilhas de móveis destruídos pela enchente a 500 m do rio —muito distante da área que tradicionalmente alaga— nos bairros de São Bernardo e Santa Maria, em Belford Roxo.
O nível da água chegou a quase 2 m de altura em alguns pontos. Por isso, muitas casas que já possuem barreiras para evitar inundações dessa vez foram atingidas.
Foi o que aconteceu na casa de Luciana de Oliveira, 41, que vende lanches em um trailer na região.
Na porta de sua casa, no São Bernardo, havia colchões, sofá, poltronas e guarda-roupas. Tudo destruído. A família viveu momentos de terror ao tentar escapar da inundação na noite de sexta.
"Tivemos que passar o neném pelo muro. Na rua, a água estava indo até o pescoço. Nunca vi nada assim aqui", diz ela. Luciana, a filha e as crianças que vivem na casa se abrigaram em uma laje.
"Ficamos três dias na laje, descemos hoje [segunda (4)]. Passamos a noite toda molhadas, com frio e fome. A vizinha que nos deixou no terraço tinha uns três lençóis secos. Cobrimos as crianças, que estavam com frio", relata.
'Está piorando e vai piorar mais, porque o bairro está crescendo. E rápido'
O pedreiro Maelson Damião de Andrade, 63, vive na favela do Guedes, no bairro São Bento, ponto mais crítico de Duque de Caxias. Morador do local há 18 anos, ele já perdeu a conta de quantas vezes as enchentes destruíram seus móveis e eletrodomésticos. A última vez foi em dezembro passado.
"Aqui sempre alagou. Perdemos tudo. Não tem mais cama, não tem mais guarda-roupa. O sofá também já está quase indo para o beleléu. Não adianta a gente ir para a loja comprar porque no outro ano vai perder tudo. Não adianta comprar móvel caro e estragar. É jogar dinheiro no lixo. Todo ano é essa enchente direto. A gente vive aqui precário. Cheio de lama, cheio de poça d'água. Não vem um [político] agora. Só vai aparecer aqui na próxima eleição. Na eleição, isso aqui fica lotado. Mas ninguém faz nada. [A situação] está piorando e vai piorar mais, porque o bairro está crescendo e rápido. Mesmo com as enchentes está crescendo, porque o povo quer lugar para morar. Coisa boa a gente quer ter, mas vai comprar para perder?"
'Peixe aqui não existe mais', diz pescador
Com mais de 40 anos de mar, Gilciney Gomes, presidente da Colônia de Pescadores de Duque de Caxias, denuncia a crescente poluição nos rios do município, que afetam a Baía de Guanabara.
Entre suas revelações, estão canaletas de chorume saídas do antigo lixão de Gramacho até o rio Sarapuí (veja o vídeo acima).
"A poluição não afeta só os peixes, mas os pescadores também. Isso aqui [chorume] é rejeito de lixo. Aqui peixe não existe mais. A gente nem sabe o que acontece com os peixes, porque já aconteceu. Sumiu tudo. Já estivemos aqui com várias autoridades e ninguém resolve nada. A gente está vendo descaso, omissão e covardia. Já estiveram aqui todos os poderes públicos: municipal, estadual e federal. Queremos que tomem uma atitude porque já morreu pescador, não sabemos de quê. Pescadores que colocavam o pé nisso aqui tiveram feridas embaixo do pé."
'Racismo ambiental' é agravado por poluição e desmatamento
O ambientalista Sergio Ricardo, do Movimento Baía Viva, destaca que o fato de as pessoas mais pobres serem as mais prejudicadas pelo aquecimento global no Rio não é um fenômeno isolado.
"O último relatório do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, em inglês] aponta pela primeira vez que as mudanças climáticas não vão afetar todos da mesma forma. Há um viés de injustiça climática e racismo ambiental."
Segundo o ambientalista, o desmatamento também piora as inundações. A vegetação ajuda o ambiente a reter a água da chuva por mais tempo e diminui a quantidade de sedimentos despejados nos rios.
"Essas regiões são planícies de inundação dos rios. No passado, chovia a mesma quantidade de água e ela se espraiava por mangues, brejos e lagoas. Hoje foram todos aterrados."
"Em um lugar onde tem uma quantidade enorme de pessoas, que não está bem urbanizado, as ruas não são boas, a infraestrutura é ruim e a população não tem um poder aquisitivo tão elevado. Tudo junta para fazer uma confusão", diz o engenheiro Paulo Canedo, professor da Escola Politécnica da UFRJ e projetista das principais obras contra enchentes na baixada nas últimas décadas.
Desde 1990, iniciativas para reduzir as inundações da região são discutidas. Durante os governos Lula e Dilma, o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) realizou parte dessas intervenções, como a construção de polders [sistema composto por diques, reservatórios, dutos e bombas] em vários pontos.
Porém, as intervenções restantes ainda representam um desafio bilionário para os cofres públicos.
Segundo Canedo, os projetos pendentes nos rios Sarapuí e Saracuruna custariam ao menos R$ 1,7 bilhão. Para resolver o problema em São Gonçalo, na região metropolitana, mais R$ 1 bilhão será necessário em obras no rio Guaxindiba.
Fonte: UOL
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